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Tendo um olhar cuidadoso

No dia 16 do corrente mês, o STJ decidiu, pacificando o entendimento de que as concessionárias não devem indenizar passageiros em casos de importunação sexual, ocorridos durante o percurso. Embora trate-se duma posição juridicamente justificável e dum entendimento plenamente lógico da corte, ainda resigna uma pontuação suscetível a indagações. Contudo, é preciso antes analisar a questão passo a passo.

https://www.conjur.com.br/2020-dez-03/empresa-transporte-nao-indenizar-passageira-assediada2


https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/16122020-Segunda-Secao-define-que-concessionaria-nao-tem-de-indenizar-vitima-de-assedio-no-transporte-publico.aspx


Primeiro ponto, o que seria “importunação sexual”? Importunação sexual é o crime definido no art. 215-A do Código Penal, “Praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro”, de exemplo serviriam as ditas "encoxadas" ou “apalpadelas” que de maneira frequente e lamentável ocorrem em transportes públicos e noutros ambientes de aglomeração. Esse delito é no senso comum recorrentemente confundido com o “assédio sexual”, que em termos técnicos designa outra prática sexualmente delituosa, ocorrida no ambiente de trabalho.

É também preciso esclarecer o que diz a legislação sobre a responsabilidade das transportadoras em relação aos passageiros e sua integridade, insta no ponto central da questão o art. 734 do Código Civil, “O transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade.”

Resta óbvio que nenhum dos ministros há de afirmar que um passageiro chegaria incólume ao seu destino sendo vítima duma importunação sexual, porém o que se alega, inclusive por maioria, como foi decidido, é que não seria possível aferir culpa a empresa de transporte, pois trataria-se dum fortuito externo, ou seja, um fato sob o qual a companhia não teria controle. Nas palavras do relator do processo, ministro Raul Araújo, "A repulsa social provocada pelo comportamento celerado de terceiro não pode inaugurar para o empreendedor categoria de responsabilidade por risco integral, sem haver previsão na legislação ou correspondência lógica com a realidade".

Alega-se ainda que o delito é imprevisível e inevitável, pois o agressor age de maneira calculada e oportunista, ocorrendo a conduta, muitas vezes, “numa fração de segundos”, e que não seria exigível da empresa uma prevenção ou detecção eficiente.

Sem embargo esse seja um entendimento antigo do STJ, já há muito consolidado na corte, utilizado anteriormente para definir os casos de assaltos a ônibus e trens, existem dois problemas quanto à sua aplicação sob a égide da importunação sexual; o artigo 734 fala de sua exceção de modo restrito e não menciona “caso fortuito" como tal, cita “força maior”, que seria algo do tipo dum evento natural imprevisível, como o dano causado por um raio que atingisse o veículo; o segundo empecilho consiste no quão duvidoso é o argumento da imprevisibilidade do crime, afinal trata-se, infelizmente, duma prática já comum no cotidiano brasileiro, como podem constatar várias pesquisas, e nessa parte o próprio STJ acaba se contradizendo, pois voltando aos casos de assaltos a transportes coletivos, a corte define que se é sabido que o trajeto é perigoso, a companhia deve ser responsabilizada, caso o veículo seja abordado por assaltantes, afinal teria essa assumido o risco; ora, se as transportadoras desconhecem a recorrência da importunação sexual em seus veículos, dá-se-o por injustificável ignorância, não estariam elas então assumindo um risco também nessa situação? Aliás, não estariam essas assumindo o risco quando, objetivando o lucro a qualquer custo, permitem que seus veículos fiquem superlotados, tornando o ambiente propício a esse tipo de conduta penal? Será que as empresas realmente estão tomando todas as precauções para evitar esse tipo de situação? Será que podem, de fato, serem eximidas de culpa, quando ocorrido?


https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/03/04/relatos-de-assedio-no-transporte-publico-aumentam-18-pontos-percentuais-em-2020-em-sp-diz-pesquisa.ghtml


https://noticias.r7.com/sao-paulo/transporte-publico-e-mais-propicio-a-assedio-para-4-em-cada-10-mulheres-12032019#:~:text=Os%20dados%20do%20levantamento%20apontam,aplicativos%20e%203%25%20no%20trabalho.


https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2019/06/18/97percent-das-mulheres-dizem-ja-ter-sido-vitima-de-assedio-no-transporte-publico-e-privado-no-brasil-diz-pesquisa.ghtml


https://32xsp.org.br/2019/03/15/4-em-cada-10-paulistanas-ja-sofreram-assedio-no-transporte-publico/


https://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2019/03/iminencia-do-assedio-marca-rotina-das-mulheres-no-transporte-publico/


Uma vez questionada a decisão do Superior Tribunal de Justiça, resta ainda neste artigo dar voz a parte da corte que se opôs a ela, "O ciclo histórico que estamos presenciando exige um passo firme e corajoso, muitas vezes contra uma doutrina e uma jurisprudência consolidadas. É papel do julgador, sempre olhar cuidadoso, tratar do abalo psíquico decorrente de experiências traumáticas ocorridas durante o contrato de transporte. Não pode um ministro assumir postura resignada e comodista. Deve questionar a jurisprudência", ministra Nancy Andrighi.


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