A experiência antropológica aponta que a existência duma sociedade complexa não é praticável sem a privacidade na condução da vida pessoal, significa dizer, que é mais plausível que sejam seus membros, individualmente, os donos dos bens que esses consideram necessários às suas satisfações, sendo assim, consubstancia-se indispensável a propriedade privada.
Garantida a delimitação individual, não se pode desprezar a sublimação da propriedade e da utilidade públicas mediante aquilo que é privado, olvidando o vernáculo latino “ubi homo, ibi societas”. É inconcebível a vivência humana fora dum modelo coletivo, ressalto ainda, que em tese, uma sociedade conclama o bem de cada um de seus membros, o que limita a autonomia do particular nas atribuições de sua propriedade. Surge logo a concepção de utilidade, da qual discorreram inúmeros pensadores, porém nenhum a definiu melhor que Antoine de Saint Exupéry:
“– Moi, dit-il encore, je possède une fleur que j’arrose tous les jours. Je possède trois volcans que je ramone toutes les semaines. Car je ramone aussi celui qui est éteint. On ne sait jamais. C’est utile à mes volcans, et c’est utile à ma fleur, que je les possède. Mais tu n’es pas utile aux étoiles…”
"- Eu, disse ele ainda, possuo uma flor que rego todos os dias. Possuo três vulcões que revolvo toda semana. Porque revolvo também o que está extinto. A gente nunca sabe. É útil para os meus vulcões, e útil para a minha flor que eu os possua. Mas tu não és útil às estrelas ..."
A utilidade sempre visa atender ao interesse público, isso pode se dar de duas formas: a) indireta, quando a propriedade é privada e exerce uma função social, ou seja, o particular assume a posse dum bem para satisfazer sua necessidade, atendida a demanda individual a sociedade fica desonerada de prover àquele sujeito a respectiva saciação; b) direta, quando a propriedade é pública, já estando assim intrinsecamente ligada a sua destinação final. Exemplificando a primeira hipótese quando um cidadão compra uma casa, a sociedade não tem mais de prover-lhe moradia. Ora ilustrando a segunda situação, quando é construído um hospital público, basta o seu efetivo funcionamento para que seja alcançado o interesse público.
A utilidade indireta conduzirá, ainda que imprecisamente, a distribuição de riquezas, pois a liberdade econômica só é plausível se de maneira generalizada estiver garantido o mínimo existencial, sem embargo, a Economia consiste na arte de administrar recursos findáveis. Já a utilidade direta será responsável por prover mecanismos isonômicos que visem mitigar as desigualdades naturais do plano capitalista.
A ótica, seja a anarco-socialista, seja a tribal, que generaliza e expande o espectro da utilidade pública, consiste numa concepção político-social precária, por dois simples motivos: a) inefetivação patrimonial, a partir do momento em que todos os bens passam a ser de todos, passam a ser da mesma forma de ninguém, seria impossível obter socialmente tamanha coesão regencial, a ponto de atender a um grupo numeroso de pessoas sem delegar poderes, que neste caso se resignam à posse útil, as pessoas hão de cuidar melhor das próprias casas que duma casa alheia; b) ignorância das imprescindibilidades individuais, os elementos duma vida digna são fáceis de se apontar de modo genérico, alimentação, moradia, lazer… contudo não são fáceis de delimitar num plano divisível, pois nem todos comem os mesmos pratos, desejam morar nos mesmo tipo de alojamento, muito menos possuem a mesma ideia de diversão. Não pode um líder, um governo, ou qualquer outro tipo de assembleia, impor a cada um, juízos que são inerentes à liberdade individual.
Já a visão dotada de falso liberalismo, com excessiva defesa da propriedade privada, conspurca o cenário social com a autodestruição da espécie; se alguma parcela da população mundial não tiver acesso à saúde, então todo o planeta estará vulnerável a uma doença contagiosa. Não obstante, é absorta a ideia de querer autoritariamente ajustar desigualdades inerentes à origem da Civilização, contudo, não se pode dizer que há liberdade, onde há fome.
Diante da impossibilidade de se estabelecer um sistema plenamente igualitário, faz-se necessária a conclamação de dois preceitos: a) a garantia do mínimo existencial, assegurar que todas as pessoas tenham vida digna; b) a isonomia social, criar um cenário onde há possibilidades reais de ascensão pelas camadas econômicas. A primeira se dará por meio duma eficiente redistribuição de riquezas; enquanto a segunda exigirá mecanismos que estabilizem todos os indivíduos juntos num elevado patamar equitativo de instrução e de provisão; dentre esses mecanismos o mais evidente, é a educação pública de qualidade.
A consubstanciação do Estado moderno, ou qualquer outra forma futura que venha a encarnar o espírito da mediação coletiva, poderá notar a democracia como um regime, até hoje o único, que efetivamente se propõe a respeitar as liberdades individuais, devendo essa encontrar no plano econômico, mediante a ponderação entre o eixo liberal-conservador, uma resposta razoável às demandas inerentes à vida em sociedade.
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